sábado, 14 de maio de 2011

Graciliano Ramos - primeiro encontro

Olá, amigos

Quinta-feira foi muito bom estar com vocês para falar de um livro tão espetacular: São Bernardo, de Graciliano Ramos. Muito bom também ter contado com o Oiticica, Ricardo Oiticica - ele é o cara! Que bom poder conversar sobre Alagoas, sobre o coronel-narrador e o narrador-coronel... conversar sobre Graciliano, considerado "a mais alta figura da prosa nordestina" pelo crítico Nelson Werneck Sodré, em seu História da Literatura Brasileira. Diz Sodré:
              " Minucioso e exato no traço, reconstituindo a paisagem física muito menos que a paisagem humana, mas mostrando na segunda a influência da primeira, como nos quadros da seca, Graciliano Ramos foi o narrador da decadência de uma classe, no meio nordestino, conseguindo superar, pela sua vigorosa arte literária, tudo o que o regionalismo tem de meramente superficial e externo  (...), ao mesmo temo em que refletiu, de maneira fiel, o resultado nas pessoas de todo o contraste e de todo o conflito representado pela vida brasileira e de seu tempo."

Abaixo, envio para vocês o capítulo da minha dissertação de mestrado, cujo tema era Imagens do professor na literatura brasileira, em que falo sobre São Bernardo. E não se esqueçam, vocês podem publicar nesse blog, todos somos administradores!


“Imaginei-a uma boneca da escola normal. Engano.”
(ou O professor em São Bernardo, de Graciliano Ramos)

Paulo Honório resolve abrir uma escola na sua fazenda São Bernardo. Ele queria apenas “um bocado de leitura, escrita e conta”.[1] Madalena é professora. “Excelente aquisição, mulher instruída”, sugere João Nogueira. “Até lhe enfeita a casa”, reitera Azevedo Godim. “Tolice. Ando lá procurando bibelôs?”, retruca o fazendeiro.
Paulo Honório é o personagem-narrador do segundo romance de Graciliano Ramos, São Bernardo, publicado em 1934. Além da professora, o fazendeiro resolve buscar uma mulher para lhe dar herdeiros: “Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéia que me veio sem que nenhum rabo-de-saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar.”[2], diz ele. Vai, então, à casa do dr. Magalhães, juiz de direito, em busca de d. Marcela, sua filha. Mas lá se depara com uma senhora nova e loura, “que sorria também, mostrando os dentinhos brancos.”[3] É através de diminutivos que o narrador mostra o encanto que sentiu pela mocinha loura: “A loura tinha a cabecinha inclinada e as mãozinhas cruzadas, lindas mãos, linda cabeça.”[4] “Observei então que a mocinha loura voltava para nós, atenta, os grandes olhos azuis.”[5] “De repente conheci que estava querendo bem à pequena. Precisamente o contrário da mulher que eu andava imaginando – mas agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha. D. Marcela era bichão. Uma pitaria, um pé-de-rabo, um toitiço!”[6]
A apresentação, no entanto, só se dá no encontro seguinte, quando Paulo Honório, ao voltar da capital, encontra d. Glória, a tia de Madalena.  Na estação, ela o apresenta à sobrinha. O fazendeiro, encantado, fica tão atrapalhado, que deixa cair um dos pacotes de sua mão. Já tinha ouvido elogios à professora, já tinha também se encantado pela mocinha loura: “Eu já conhecia a senhora de nome. E de vista. Mas não sabia que era uma pessoa só”[7], confessa.
Madalena não se assemelha a nenhuma das mulheres comuns ao fazendeiro. D. Marcela era “bichão”, Madalena era miudinha e fraquinha; Germana e Rosa eram “criaturas”, Madalena, “uma senhora que vem da escola normal”[8]. Godim reforça a diferença, quando conta que a professora escreve para o jornal Cruzeiro, é “mulher superior”[9], “muito instruída”[10]. 
O convite é feito, mas Madalena hesita. Paulo Honório, então, dá a cartada final. “Pra ser franco, essa história de escola foi tapeação. [...] Resolvi escolher uma companheira. E como a senhora me quadra... Sim, como me engracei da senhora quando a vi pela primeira vez...”[11]
Graciliano conduz, então, um diálogo espetacular, em que Paulo Honório demonstra todo o seu fascínio por Madalena. O fazendeiro, justo ele que se dizia desprovido das palavras, vai transformar cada objeção em vantagem, num discurso extremamente sedutor. As diferenças de idade, cultura, meio social e classe econômica são todas convertidas em condições favoráveis para o casamento:


– Deve haver muitas diferenças entre nós.
– Diferenças? E então? Se não houvesse diferenças, nós seríamos uma pessoa só. – Deve haver muitas. Com licença, vou acender o cachimbo. A senhora aprendeu várias embrulhadas na escola, eu aprendi outras quebrando a cabeça por este mundo. Tenho quarenta e cinco anos. A senhora tem uns vinte.
– Não, vinte e sete.
– Vinte e sete? Ninguém lhe dá mais de vinte. Pois está aí. Já nos aproximamos. Com um bocado de boa vontade, em uma semana, estamos na igreja.
 O seu oferecimento é vantajoso para mim, seu Paulo Honório, murmurou Madalena. Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De qualquer maneira, estou agradecida ao senhor, ouvir? A verdade é que sou pobre como Jô, entende?
– Não fale assim, menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada? Quer que lhe diga? Se chegarmos a um acordo, quem faz um negócio supimpa sou eu.[12]

Paulo Honório e Madalena casam-se, na capela de São Bernardo. Paulo Honório imaginava a professora “uma boneca da escola normal”,[13] mas logo percebe o engano: nos primeiros dias de casamento, Madalena larga-se para o campo, rasga a roupa nos garranchos do algodão, percorre as casas dos moradores, onde garotos empalamados e beiçudos agarravam-se às suas saias, folheia livros, examina documentos, conserta a máquina de escrever, e, além de tudo, manifesta sua opinião a favor dos empregados, contra as condições de trabalho oferecidas pelo marido fazendeiro.  À opinião da mulher, reiterada pela tia, Paulo Honório responde com gritos.

Madalena empalideceu:
– Não é preciso zangar-se. Todos nós temos as nossas opiniões.
– Sem dúvida. Mas é tolice querer uma pessoa ter opinião sobre assunto que desconhece. Cada macaco no seu galho. Que diabo! Eu nunca andei discutindo gramática. Mas as coisas da minha fazenda julgo que devo saber. E era bom que não me viessem dar lições. Vocês me fazem perder a paciência.[14] 


A amabilidade de Madalena, sua generosidade com os empregados, sua preocupação com os pobres, surpreende o “coração agreste”, que até então tinha todo o poder na mão e tratava os empregados como queria, sem ninguém a contestá-lo. Para Paulo Honório, o que Madalena propunha era um absurdo. Como gastar, por exemplo, seis contos de réis em material para a escola – globos, mapas, etc. –, justo ele que aprendeu leitura numa bíblia de capa preta? “Para que aquilo? O governador se contentaria se a escola produzisse alguns indivíduos capazes de tirar o título de eleitor.”[15] Para que dar um vestido de seda, mesmo que rasgado à Rosa? “Deitasse fora, foi o que eu disse a Madalena. Se estava estragado, era deitar fora. Não é pelo prejuízo, é pelo desarranjo que traz a esse povinho um vestido de seda.”
Madalena contestava as atitudes do marido, sua forma de tratar os empregados, sua violência, arrogância, crueldade, autoritarismo. Para Paulo Honório, Madalena aborrecia-se com “frivolidade”, que ele não podia entender, muito menos preocupar-se em responder. “Fiz aquilo porque achei que devia fazer aquilo. E não estou habituado a justificar-me, está ouvindo? Era o que faltava. Grande acontecimento, três ou quatro muxicões num cabra. Que diabo tem você com o Marciano para estar tão parida por ele?” [16]
Mesmo grávida, a professora não se intimida, mantém as críticas ao marido, críticas feitas de forma objetiva, clara, sem rodeios. Graciliano constrói um longo diálogo entre o casal, após Paulo Honório ter sido ríspido com d. Glória, criticando-a por falar demais e passar o tempo lendo romances, sem trabalhar. Madalena refuta um a um os argumentos do marido, sem perder a delicadeza, sem levantar a voz:

Madalena estava prenha, e eu pegava nela como em louça fina. Ultimamente dizia-me coisas desagradáveis, que eu fingir não compreender. Via a barriga crescer-lhe. Uma compensação. Sentei-me e, para não desgostá-la:
Foi realmente brutalidade. Brutalidade necessária, mas enfim brutalidade. É uma pena recorrer a isso.
E para que recorre? chasqueou Madalena.
Já você começa. Esses modos não, tenha paciência. Detesto picuinhas. Comigo é trás zás, nó cego. Subterfúgios não.
Quem é que está com subterfúgios? Foi uma brutalidade.
Necessária.
Desnecessária. Vê-se bem que você não gosta de minha tia. [17]

A professora não se cala e é capaz de dizer que não há comparação entre a tia e a fazenda, o que para Paulo Honório era um absurdo: “Vaidade. Professorinhas de primeiras letras a escola normal fabricava às dúzias. Uma propriedade como S. Bernardo era diferente.”[18]  E como Madalena não sossega, Paulo Honório é obrigado a encerrar a discussão (e Graciliano, o capítulo) com uma aparente concessão: “Pode ser que você tenha razão. Eu discordo. Mas enfim cada qual tem lá o seu modo de matar pulgas.”[19]
A oposição de Madalena, sempre exposta em tom baixo, de forma tão diferente a que a “alma agreste” estava acostumada, gera ódio em Paulo Honório, “uma cólera despropositada”, reconhece ele mais tarde. Ele tenta conter a mulher, “a d. Madalena não dá ordens”, mas não consegue. Começa, então, a sentir ciúmes dela, de sua amizade com Padilha, de sua simpatia por Nogueira. “Cruzei descontente as mãos enormes, cabeludas, endurecidas em muitos anos de lavoura. Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena – e comecei a sentir ciúmes.”[20] Se a aparência do fazendeiro antes lhe garantia respeito – “a idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita  consideração”[21], a partir dos ciúmes, a sua percepção de si muda e ele se reconhece um monstro:  “Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado [...] Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe dessas deformidades monstruosas”[22].
A distância entre a professora e o fazendeiro fica cada vez maior:

Eu narrava o sertão. Madalena contava fatos da escola normal. Depois vinha o arrefecimento. Infalível. A escola normal! Na opinião do Silveira, as normalistas pintam o bode, e o Silveira conhece instrução pública nas pontas dos dedos, até compõe regulamentos. As moças aprendem muito na escola normal.
Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis. Tenho visto algumas que recitam versos no teatro, fazem conferências e conduzem um marido ou coisa que o valha. Falam bonito no palco, mas intimamente, com as cortinas cerradas, dizem:
Me auxilia, meu bem. [...]
Madalena, propriamente, não era uma intelectual. Mas descuidava-se da religião, lia os telegramas estrangeiros.
E eu me retraía, murchava.[23]

A visão de mundo de Madalena e o afastamento entre eles deixa Paulo Honório cada vez com mais raiva. Ele não participa do universo dela; ela não participa do universo dele. A desconfiança dele aumenta: “Eu tinha razão para confiar em semelhante mulher? Mulher intelectual.”[24] O ciúme leva-o primeiro a encontrar em si próprio as condições negativas que justificassem o desprezo de Madalena: “Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como casco de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos!”[25] O ciúme derruba o poderoso, submete o dominador, aquele que até então soubera dominar a sua vida e sobretudo a dos outros. O ciúme faz com que Paulo Honório se sinta submisso à Madalena, àquela que ele julgava apenas uma boneca, àquela que ele achava que ia lhe servir, passivamente, dando-lhe herdeiros, enfeitando sua casa e conduzindo a escola da fazenda. O ciúme o leva ao desequilíbrio.
É Madalena, portanto, a professora, que instaura nele esse desequilíbrio, que o leva à loucura: “O meu desejo era pegar Madalena e dar-lhe pancada até no céu da boca. Pancada em d. Glória também, que tinha gasto anos trabalhando como cavalo de matuto para criar aquela cobrinha.”[26] Começa a mexer nas malas, nos livros, na correspondência da mulher. Madalena chora e grita. “Depois vieram outros ataques, outros choros, outros gritos, choveram descomposturas e a minha vida se tornou um inferno.”[27]
Paulo Honório passa a desconfiar de tudo até que um dia Madalena se irrita e mostra o seu desagravo, quando ele exige que ela exiba uma carta para ele. Madalena responde: “Vá para o inferno, trate da sua vida.” Paulo Honório não agüenta: “Deixa ver a carta, galinha”. Ela responde, xingando-o, inclusive de assassino. “Os outros nomes feios que ela me havia dito não tinham significação. Aquele tinha uma significação. Era o que me atormentava.”
Atormentado, Paulo Honório demite Padilha, que retruca. “Eu sou culpado de sua mulher ter idéias avançadas?”[28] “Literatura, política, artes, religião... Uma senhora inteligente, a d. Madalena. E instruída, é uma biblioteca. Afinal eu estou chovendo no molhado. O senhor, melhor que eu, conhece a mulher que possui.”[29]
Os ciúmes são incontroláveis: “as expressões mais inofensivas e concretas eram para mim semelhantes às cobras: faziam voltas, picavam e tinham significação venenosa”[30]e os conflitos acabam provocando o suicídio de Madalena. Não há espaço para a personagem, a professora não suporta a injustiça, a crueldade, a desigualdade, a solidão. Sem saída, ela se mata.
Quando Paulo Honório escreve suas memórias, tenta descobrir quem foi Madalena e quem ele era. “Estraguei a minha vida estupidamente.”[31] Mas não há redenção. Graciliano dá ao personagem tamanha lucidez, que ele reconhece a sua impossibilidade de transformação, atribuindo sua personalidade ao meio social: “Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.”[32] E diante dessa sua primitividade, reconhece um determinismo: “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.”[33]
Diante desta impotência, só resta a escrita.

“Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.
E falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.” [34]

A escrita surge como uma necessidade, que ele a princípio se julgava incapaz, tanto que decompõe a língua em linguagens especializadas e atribui cada uma a um amigo. Mas logo percebe que só ele pode realizar o seu projeto, só ele pode contar suas memórias. O pio de uma coruja é o desencadeador da narrativa, o que provoca o que é irreversível, mas ao mesmo tempo gratuito. Escrever é gratuito. A escrita é um delírio, mistura entre passado e presente, ficção e realidade, o homem do imaginário e o homem real, fatos e lembranças.
Madalena instaura em Paulo Honório o desequilíbrio, ele não pode tê-la, ele não consegue calá-la, ele não a faz a boneca que ele imaginava que ela seria, ela não se submete, e reage a ele apenas através da palavra. Ela não aproveita a violência, instrumento que ele dominava para calar os outros. A professora se serve apenas das palavras e do diálogo, e é justamente isso que mais alucina Paulo Honório, porque ele mesmo confessa que a linguagem era o que ele menos dominava, tanto que convocara os amigos para ajudá-lo a escrever suas memórias. Uma forma de vir à tona a força das palavras, aquilo que Graciliano Ramos iria repetir em Infância: “as palavras são armas terríveis”[35].





[1] RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 56.
[2] Ibid., p. 67.
[3] Ibid., p. 74.
[4] Ibid., p. 76.
[5] Ibid., p. 77.
[6] Ibid., p. 77.
[7] Ibid., p. 91.
[8] Ibid., p. 92.
[9] Ibid., p. 95.
[10] Ibid., p. 96.
[11] Ibid., p. 101.
[12] Ibid., p. 102.

[13] Ibid., p. 110.
[14] Ibid., p. 115.
[15] Ibid., p. 127.
[16] Ibid., p. 129.
[17] Ibid., p. 134.
[18] Ibid., p. 136.
[19] Ibid., p. 138.
[20] Ibid., p. 155.
[21] Ibid., p. 230.
[22] Ibid., p. 221.
[23] Ibid., p. 158 e 159.
[24] Ibid., p. 160.
[25] Ibid., p. 164.
[26] Ibid., p. 163.
[27] Ibid., p. 164.
[28] Ibid., p. 171.
[29] Ibid., p. 173.
[30] Ibid., p. 182.
[31] Ibid., p. 220.
[32] Ibid., p. 221.
[33] Ibid., p. 220.
[34] Ibid., p. 117.
[35] RAMOS, Graciliano. Infância. Posfácio de Cláudio Leitão. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 109.

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