sábado, 16 de abril de 2011

Pra quem diz que Clarice é complicada...

O primeiro livro de cada uma de minhas vidas

            Perguntaram-me uma vez qual fora o primeiro livro de minha vida.  Prefiro falar do primeiro livro de cada uma de minhas vidas.  Busco na memória e tenho a sensação quase física nas mãos ao segurar aquela preciosidade: um livro fininho que contava a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim.  Eu lia e relia as duas histórias, criança não tem disso de só ler uma vez; criança quase aprende de cor e, mesmo quase sabendo de cor, relê com muito da excitação da primeira vez.  A história do patinho que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou o mistério: ele não era pato e sim um belo cisne.  Essa história me fez meditar muito, e identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio – quem sabe se eu era um cisne?

            Quanto a Aladim, soltava minha imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o impossível naquela época estava ao meu alcance.  A ideia do gênio que dizia: pede de mim o que quiseres, sou teu servo – isso me fazia cair em devaneio.  Quieta no meu canto, eu pensava se algum dia um gênio me diria: "Pede de mim o que quiseres."  Mas, desde então, revelava-se que sou daqueles que têm que usar os próprios recursos para ter o que querem, quando conseguem.

            Tive várias vidas.  Em outra de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado porque era muito caro: Reinações de Narizinho.  Já contei o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo qual passei, pois, já pronta para ler Monteiro Lobato, o livro grosso pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria.  A menina gorda e muito sardenta se vingara tornando-se sádica e, ao descobrir o que valeria para mim ler aquele livro, fez um jogo de "amanhã venha em casa que eu empresto".  Quando eu ia, com o coração literalmente batendo de alegria, ela me dizia: "Hoje não posso emprestar, venha amanhã".  Depois de cerca de um mês de venha amanhã, o que eu, embora altiva que era, recebia com humildade para que a menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele primeiro monstrinho de minha vida notou o que se passava e, um pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele mesmo momento me fosse emprestado o livro.  Não o li de uma vez: li aos poucos, algumas páginas de cada vez para não gastar.  Acho que foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.

            Em outra vida que tive, eu era sócia de uma biblioteca popular de aluguel.  Sem guia, escolhia os livros pelo título.  E eis que escolhi um dia um livro chamado O lobo da estepe, de Herman Hesse.  O título me agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London.  O livro, que li cada vez mais deslumbrada, era de aventura, sim, mas outras aventuras.  E eu, que já escrevia pequenos contos, dos 13 aos 14 anos fui germinada por Herman Hesse e comecei a escrever um longo conto imitando-o: a viagem interior me fascinava.  Eu havia entrado em contato com a grande literatura.

            Em outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar.  Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro.  E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo.  Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu!  E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o.  Só depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário, considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield.

Publicado originalmente no Jornal do Brasil em 24 de fevereiro de 1973.

LISPECTOR, Clarice.  A descoberta do mundo.  4. ed.  Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.  p. 491-492.

3 comentários:

  1. Foi, mesmo, muito bom.
    Estou sobrecarregada: é Machado, é Clarice...Vale Machado na Clarice?
    bj
    Thaïs

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  2. Esta semana está hard mesmo!! Mas foi muito bom o nosso encontro. O próximo eu irei perder, mas vou aproveitar meus dias frios no sul para me dedicar à Clarice! Bjsss

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  3. E eu achando que o texto era seu...

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